segunda-feira, 22 de setembro de 2008


Pianista


A faísca do isqueiro iluminou seu rosto e logo se apagou. Aproveitando a luz fraca, pegou e virou o maço de cigarros, derrubando o último sobre as teclas. Encheu o copo com gim barato enquanto levava o cigarro até a boca com delicadeza. Com algumas tentativas, conseguiu fazer uma pequena chama brotar do isqueiro e com ela acendeu seu cigarro, dando uma tragada leve. Apoiou o cotovelo esquerdo no canto do teclado, pousando a cabeça na mão. Pegou o copo e o levou aos lábios com suavidade, deixando-o novamente sobre o tampo do piano de cauda após sorver um gole. Observou as velas acesas em cima da madeira escura, enquanto acariciava as teclas com a ponta dos dedos. Começou um leve dedilhar, fazendo algumas notas agudas soarem distantes e melancólicas pelo salão escuro. Tocava aleatoriamente, mas tinha certeza de cada tecla que pressionava com cuidado. Sentia a melodia fluir instantaneamente pelos dedos, dizendo onde deveria pousá-los. Tragando o cigarro e soltando uma fumaça cinza pelo nariz, levantou a cabeça devagar e deixou a mão livre, levando-a até as teclas. Iniciou uma dança lenta com ambas, um denso valsar lateral que logo se transformou na Sonata ao Luar. Ia alternando entre o forte e o piano, ficando às vezes a tocar em pianíssimo, por um leve capricho pessoal, de forma que fazia a música crescer aos poucos, mas nunca chegar ao seu clímax. Foi aumentando o andamento e saltou para uma composição própria, que criara no mesmo instante em que seus dedos tocavam as teclas de marfim. Em sua cabeça via a partitura e no seu coração quebrado, escutava a melodia e harmonia, que ia transferindo ao instrumento, fruto de sua tristeza. Voltou aos poucos ao pianíssimo, dando a impressão de que seus dedos não tocavam as teclas, mas o som doce comprovava que isso acontecia em algum momento. Bateu em algumas teclas com força e deixou o som ecoando pelo salão, enquanto tragava o cigarro e o tirava da boca para tomar um pouco do gim amargo. Faltava gelo, mas quem se importava com a merda do gelo nessas horas. Bebeu o liquido até o fim e vendo a garrafa quase vazia, iluminada pelas fracas luzes das velas, deixou o copo rolar da mão e se espatifar no chão de mármore. Sugou a nicotina junto com suas várias toxinas, sentindo o pulmão queimar por alguns instantes, antes de liberar a fumaça. Uma leve tontura invadiu sua cabeça, mas não lhe deu atenção, dando uma última tragada, fazendo com que as cinzas flutuassem até as teclas, sujando-as levemente. Respirou fundo e voltou à sonata ao luar, enquanto a lua saia de trás das nuvens, invadindo o salão pelas grandes janelas ovais, escoando para cada canto. Trazia uma claridade intensa e falsa ao lugar, deixando em destaque a criatura pálida, de cabelos negros e fundos olhos verdes, com seu piano feito da escuridão do seu ser. Suas mãos bailavam habilmente, invadindo a Apassionata em seu 7ª compasso, para depois pular ao prelúdio de Chopin. Aventurou-se pelas notas da Tocatta & fuga de Bach, caindo em Mozart logo depois, com a respiração mais rápida e levemente tensa. Foi baixando o ritmo até quase parar, tocando cada nota bem vagarosamente, alongando seu tempo. Uma leve brisa fez as chamas oscilarem, e logo brilharem com mais força, fazendo com que se reanimasse. Seguindo o ritmo do seu coração, foi de Largo ao Adágio, passando ao moderato, alegro. Tocava com fúria quando entrou no prestíssimo, uma melodia cheia de amargura e tristeza. Sua musculatura doía, seu corpo reclamava, mas não queria parar e não podia, tocar era a sua vida e se parasse, morreria. Seu coração acelerava cada vez mais sua respiração e fazia com que comprimisse levemente os grandes olhos, marcados pelas olheiras profundas. Não que precisasse ver o que estava fazendo, afinal tocava com a alma e não com os sentidos. Os raios brilharam do lado de fora, iluminando o salão por alguns instantes, mas a deixavam só com as velas e seu piano que ia regredindo o andamento lentamente, conforme cada chama se extinguia, ao lutar com a ventania que escancarava as janelas. Mas não choveu aquela noite e os trovões que ribombavam foram embora, mantendo o aposento novamente em calmaria, apenas com uma única vela para assistir sua melodia que voltara ao rimo quase estático e pianíssimo. Sua mão esquerda desabou sobre as teclas no extremo esquerdo assim que a última vela se transfigurou em cera pelo piano. O som reverberou solitário pelo grande salão, lugar de grandes bailes e animadas festas, enquanto apenas um par de olhos marejados e lágrimas escarlates brilhavam na escuridão, deixando que ele se afogasse em sua sensualidade perversa e lúdica.


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